RPCD, vol. 4, nr. 1: Janeiro-Junho/January-June 2004
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Ano Europeu da Educação pelo Desporto

Nunca como hoje a sociedade foi tão moldada pelo conhecimento. Era pois de esperar que vivêssemos num ambiente propício ao triunfo e harmonia da ética e da razão. Só que o progresso científico e tecnológico não leva automaticamente no seu bojo e passo o aprimoramento da consciência. Parece até gerar o contrário, não se estranhando que a crise e a miséria, antes de serem económicas e físicas, sejam de (des)ordem moral e social; que irrompam portanto da fragilidade dos costumes, princípios e valores.

Também assim foi no passado e será no futuro. Grandes instituições e impérios ficam pelo caminho, vitimados sempre pela doença da imoralidade. Se olharmos à nossa volta, sem necessidade de compulsar a história, não faltarão exemplos a confirmar esta tese. Empresas e potentados, com nome sobejamente conhecido à escala nacional e mundial, conhecem dificuldade e falência, cuja origem provém em menor ou maior grau de maleitas morais. É esta igualmente a origem da profunda desilusão com os dias de cerração que estamos a viver.

Fomos – os da minha idade e acima dela – educados na família e instruídos na escola a tomar o esforço e suor do corpo como alimento da alma. A erguer a honra e o sentido do dever como bandeiras da vida. A aproveitar o presente para construir o futuro. A submeter o momento imediato ao interesse superior do médio e longo prazo. A saber esperar para colher os frutos maduros do amanhã. Fomos ensinados a ver a sinceridade e verticalidade das palavras e atitudes como bitolas da conduta. A disciplina, o trabalho, o afinco e o sacrifício como meios do sucesso. A verdade, frontalidade, autenticidade, honestidade, seriedade e nobreza como marcas do carácter. A paixão e amor à profissão como deveres irrecusáveis. A entrega a causas e utopias como obrigação superior. A elevarmo-nos na procura de ideais e a fugirmos de actos vis, rasteiros e banais. A olhar com admiração e veneração os probos, justos e honestos; e com desdém e reprovação os trafulhas, aldrabões, hipócritas, safados e oportunistas.

Fomos sensibilizados para a dor da transcendência e advertidos contra o comodismo da mediocridade. Fomos socializados no respeito do bem, no apreço da virtude, na rejeição do mal, no receio do pecado e no medo do castigo, isto é, numa consciência de que muita coisa era proibida. Mas fomos também formados num contexto político de ausência e repressão dos direitos e, em reacção, aderimos com entusiasmo à cultura ideológica da sua reivindicação. Sem darmos por isso era quase envergonhados que falávamos dos deveres, até deixarmos de os invocar. Ora aquilo que não tem palavras tende a desaparecer e deixa mesmo de existir.

Hoje vemos o universo da educação e formação esboroar-se como um baralho de cartas. Constatamos atónitos que a batalha pelo homem como pessoa moral é muito difícil de ganhar e carece de ser retomada em todas as épocas e lugares e por todos os meios. Sentimo-nos tomados de desânimo, impotência e pessimismo face ao crescendo de uma pseudo-ética ausente de tudo quanto implique respeito de compromissos e mandamentos. Admite-se o vale tudo e o sucesso a todo o custo, até mesmo com o atropelo dos mais elementares valores cívicos e morais. Agora tudo é permitido. Como se deveres e direitos não fossem as duas faces da moeda da vida.

Esta sensação generalizou-se e o diagnóstico está feito, sem que isso implique uma mobilização geral para remediar o mal. Mas há uma aguda consciência da situação e regista-se a tentativa de acordar as forças latentes em diferentes domínios, acreditando que podem daí irradiar efeitos regeneradores do contexto mais geral.

É assim que a União Europeia e outras instâncias decidem apelar ao desporto e acender a chama das virtualidades que ele encerra. Convocam-no para se posicionar inequivocamente ao lado da educação, para vir em seu socorro neste ano 2004 de Jogos Olímpicos e de Campeonato Europeu de Futebol.

O mesmo é dizer que a ideia que temos do desporto, apesar de sujeita a maus tratos, agravos e vilipêndios, continua aí como bandeira levantada ao vento das angústias e desassossegos. Mais, em simultâneo com a profunda desilusão com o devir social, a crença no desporto e no seu papel de regeneração continua em alta e a sua cotação é superior à dos seus parceiros sociais.

Mas… poderá o desporto corresponder a tão relevante desafio? Não está ele afectado pela falta de credibilidade moral que atinge a sociedade de que faz parte integrante? Será uma reserva de virtude e moralidade, isolada do exterior por um cordão sanitário? Não tem também uma quota-parte da falta de educação, de ética e civismo que mina a sociedade? Não é também ele um feudo dos “heróis”, descritos de modo magistral por Hegel, aos quais é lícito aquilo que não é permitido ao homem comum, inclusive o uso da violência e até da prepotência?

Por ser um espaço normativo balizado por regras e exigências éticas e morais na procura do sucesso, o desporto pode dar uma resposta positiva ao repto que lhe é lançado. Para tanto carece de olhar para ele próprio no todo e na parte e reconhecer que também nele lavram a mentira, a desonra e iniquidade, a batota e inverdade. Que medram nele faltas de educação e de boas maneiras, de gestos e palavras edificantes. Que ele é uma instituição humana. Que no bom e no mau é obra humana, é um produto da nossa liberdade para inventar e escolher e da capacidade de acção que a anima e concretiza. E que por isso pode ser melhorado, se todos os que nele laboram se virem como uma instituição com responsabilidades e imperativos sociais e morais. Se se comprometerem a fazer do desporto um projecto ético para a sociedade.

Da janela do desporto podemos olhar todo o mundo, ver e entender as suas debilidades e afectações, diagnosticar os males e prescrever algumas terapias. No palco do desporto travamos também o combate da resistência civilizacional, da criação ou supressão da vida moral, assumimos a nossa parte na defesa de uma versão da civilização inspirada em valores de acentuado pendor humanista. Também reflectimos e agimos nele em nome do florescimento do livre pensamento, de homens livres, aptos a distinguir e escolher entre o bem e o mal e a responder sem ódio e sem medo. Por isso seguimos em frente, mesmo que levados apenas pela obrigação e pela esperança. Eis uma razão bastante para não ficarmos parados à espera do que acontece. Para não nos conformarmos à tristitia e almejarmos a laetitia, ou seja, a passagem de um estado envergonhado e menor para uma perfeição alegre e maior.

PS: As circunstâncias pedem a inclusão de duas notas marginais ao teor da reflexão deste editorial. A primeira releva da dor; a segunda da esperança.

1. A biografia da FCDEF-UP é ainda curta. Mas alguns dos seus filhos e obreiros já ficaram pelo caminho. Desta vez foi o Carlos Moutinho que se viu impedido de avançar. Deixou-nos antes, muito antes do tempo, como sempre. Para nos lembrar que uns têm a sina de semear e sonhar a vida; e outros de a colher. Também por isso continuará connosco. Porque nós temos memória e gratidão.

2. É com alvoroço que a Faculdade se prepara para receber, entre 27 de Setembro e 1 de Outubro, o X Congresso de Ciências do Desporto dos Países de Língua Portuguesa. O tema lembra-nos os desafios da renovação e evoca a esperança de um futuro tão radioso como o passado deste movimento. Por isso saboreamos já a alegria do reencontro.

Jorge Bento

Artigos de investigação
[Research Papers]

Variação dos valores da distância percorrida e da velocidade de deslocamento em sessões de treino e em competições de futebolistas juniores
Speed and distance covered during training sessions and competitions of youth soccer players
Pedro F. Caixinha, Jaime Sampaio, Pedro V. Mil-Homens

Os melhores atletas nos escalões de formação serão igualmente os melhores atletas no escalão sénior? Análise centrada nos rankings femininos das diferentes disciplinas do Atletismo ao longo das últimas duas décadas em Portugal
Will best athletes as youngsters be equally best as adults?
Nélson Brito, António M. Fonseca, Ramiro Rolim

Configuração do processo ofensivo no jogo de Andebol pela relação cooperação/oposição relativa à zona da bola. Estudo em equipas portuguesas de diferentes níveis competitivos
Configuration of offensive process in Portuguese handball male teams of different competitive levels considering the relationship co-operation/opposition at the ball area
Ireneu Moreira, Fernando Tavares

Heterogeneidade nos níveis de actividade física de crianças dos 6 aos 12 anos de idade. Um estudo em gémeos
Heterogeneity in Physical Activity Levels in Children Aged 6 to 12 Years Old. A Twin Study
José A.R. Maia, Rui Garganta, André Seabra, Vítor P. Lopes

Força muscular em idosos I — Será o treino generalizado suficientemente intenso para promover o aumento da força muscular em idosos de ambos os sexos?
Aging and muscle strength I - Is generalized physical activity adequate to improve muscular strength in elderly?
Joana Carvalho, José Oliveira, José Magalhães, António Ascensão, Jorge Mota, José M.C. Soares

Força muscular em idosos II — Efeito de um programa complementar de treino na força muscular de idosos de ambos os sexos
Aging and muscle strength II – Effects of a combined physical activity program in muscular strength in elderly
Joana Carvalho, José Oliveira, José Magalhães, António Ascensão, Jorge Mota, José M.C. Soares

Resposta aguda cardio-respiratória a quatro modos de exercício realizado em ergómetros
Acute cardiorespiratory responses to four ergometer exercise modes
C.I. Abrantes, J.E. Sampaio, A.M. Reis , J.A. Duarte

Artigo de revisão
[Reviews]

Teorias biológicas do envelhecimento
Biological Theories of Aging
M. Paula Mota, Pedro A. Figueiredo, José A. Duarte

Em memória de [In memory of]
Carlos Moutinho

Em memória do Professor Carlos Moutinho
Isabel Mesquita